Respeitando a literalidade do texto: Se Moisés, Jesus Cristo, Salomão, Jeremias e o povo israelita realmente existiram, seriam eles consumidores de maconha?

A base de toda a crença cristã repousa sobre a doutrina do Pecado Original. Segundo essa narrativa, uma desobediência de Adão no Éden – a ingestão do fruto proibido – condenou toda a humanidade subsequente a carregar o peso dessa culpa. A história do Dilúvio, a entrega dos Mandamentos a Moisés e, finalmente, a crucificação de Jesus Cristo são, na teologia tradicional, eventos que se desenrolam em função desse erro primordial. Toda a estrutura da salvação cristã está, portanto, fundamentada nesse alicerce.

Mas a pergunta que se impõe é: será que o Pecado Original existe de fato, ou é uma construção teológica?

Antes de adentrarmos na análise, é essencial citar o versículo que sintetiza essa doutrina:

Romanos 5:12: "Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram."

Este trecho de Paulo parece estabelecer uma relação causal direta entre o ato de Adão e a condição decaída da humanidade. No entanto, para compreendermos a fundo essa história, é preciso voltar ao seu início, no Livro de Gênesis.

A Armadilha no Éden: Quem Plantou a Semente do Mal?

Gênesis 2:9 nos informa: "E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal."

Aqui reside a primeira e crucial observação: quem criou a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal não foi Satanás, nem o homem, mas o próprio Deus. 

Se entendermos que o "mal" é sinônimo de "pecado", a conclusão lógica é que a raiz do pecado já estava presente no Éden por vontade divina. Deus, portanto, colocou no jardim a possibilidade mesma da queda.

Em Gênesis 2:17, Ele dá o mandamento: "Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás."

A narrativa prossegue com a intervenção da serpente em Gênesis 3:4-6, que contradiz Deus: "Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal." A mulher, vendo que a árvore era "desejável para dar entendimento", comeu o fruto e deu a Adão.

A Conquista do Conhecimento e o Medo da Concorrência Divina

O resultado imediato está em Gênesis 3:7: "Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus". Isso levanta questões profundas:

  • Se Adão e Eva foram criados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:27), por que seus olhos estavam "fechados"?

  • Eles eram seres perfeitos ou, na verdade, ignorantes? A narrativa sugere que lhes faltava o discernimento moral – não sabiam distinguir o bem do mal.

  • A serpente mentiu? Gênesis 3:22 parece confirmar suas palavras: "Então disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal". A serpente disse a verdade; foi Deus quem pareceu enganá-los ao prometer uma morte imediata que não ocorreu (Adão viveu 930 anos, segundo Gênesis 5:5).

A expulsão do Éden, narrada a seguir, revela a suposta motivação divina: "ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente" (Gênesis 3:22). Isso indica que:

  1. O homem não era imortal por natureza. A imortalidade era uma condição externa, dependente da Árvore da Vida.

  2. A expulsão não foi apenas uma punição, mas um ato para evitar que o homem, agora detentor do conhecimento, se tornasse plenamente igual a Deus, alcançando a vida eterna. Deus não queria "concorrência".

  3. A Incoerência do Julgamento e a Questão da Responsabilidade

    Como se pode julgar moralmente um ser que, por definição, era incapaz de discernir o bem do mal? Adão e Eva não tinham a lógica para entender que "obedecer a Deus é bom" e "desobedecer é ruim". Para eles, obedecer e desobedecer eram atos moralmente neutros.

    Fazendo uma analogia: se um pai deixa uma arma carregada ao alcance de uma criança que não distingue o certo do errado, e a criança, sem maldade, dispara a arma, a culpa é da criança ou do pai que criou a situação perigosa? Aplicando essa lógica ao Gênesis, a responsabilidade pela "queda" recairia muito mais sobre Aquele que criou a "armadilha" do que sobre os ingênuos que nela caíram.

    Desconstruindo a Narrativa Literal: Simbolismo e Contexto Histórico

    A análise não para na superfície do texto. Aprofundando-se no hebraico e no contexto, descobrimos camadas mais ricas de significado:

    • "Adão" não é um nome próprio, mas um termo genérico. Vem de "adamah" (solo vermelho) e significa "a humanidade". Da mesma forma, "Eva" (Havvah) significa "vivente" ou "fonte de vida". A história é uma metáfora da jornada da humanidade.

    • A "costela" de Adão é uma tradução questionável. A palavra hebraica "tsela" também pode significar "lado" ou "face", sugerindo que homem e mulher foram criados como lados iguais de um mesmo ser, e não que a mulher é uma subespécie derivada do homem. Estudos apontam que essa narrativa pode refletir uma transição histórica de cultos matriarcais (a Deusa Mãe, representada por Eva como a "mãe de todos os viventes") para uma sociedade patriarcal.

    • "Elohim" é uma palavra plural. A famosa abertura "No princípio, Deus (Elohim) criou os céus e a terra" pode, numa leitura literal do hebraico, ser entendida como "No princípio, os deuses criaram...", abrindo espaço para interpretações mais complexas sobre a natureza da divindade na narrativa.

  4. Conclusão: Da Metáfora à Doutrina

    Como bem observou o mitólogo Joseph Campbell, o grande problema surge quando metáforas profundas são confundidas com fatos literais. A história de Adão e Eva é uma poderosa metáfora arquetípica sobre a transição da inocência animal para a consciência humana – com toda a dor, responsabilidade e alienação que esse despertar acarreta.

    A serpente, longe de ser uma mera vilã, simboliza o impulso para o conhecimento e a autoconstrução. A "queda" não é uma culpa hereditária, mas uma representação do nascimento da consciência moral e da liberdade humana, que inevitavelmente nos afasta de um estado de dependência infantil e nos lança no mundo para fazer nossas próprias escolhas.

    Portanto, a ideia de que toda a humanidade carrega uma culpa inerente por um ato cometido por um ancestral mítico, e que necessitou do sacrifício de um Deus para ser redimida, pode ser vista não como uma verdade factual, mas como uma construção doutrinária que se afastou do rico simbolismo original. O "pecado original" é, nesta perspectiva, uma "balela" teológica que obscurece a mensagem mais profunda do mito: a corajosa, embora dolorosa, jornada humana em busca de conhecimento e autonomia.



















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